Produção brasileira de cana-de-açúcar é mais limpa do que se imaginava
Secretaria de Energia e MineraçãoO cultivo de cana-de-açúcar no Brasil impacta menos o meio ambiente do que se imaginava. Uma pesquisa apresentada no V Congresso Brasileiro de Gestão em Ciclo de Vida, realizado de 19 a 22 de setembro, em Fortaleza (CE), demonstrou que a produção da segunda mais importante commodity brasileira é mais limpa do que apontavam estudos internacionais.
A pesquisa utiliza a metodologia de Avaliação de Ciclo de Vida de Produtos (ACV), uma ferramenta que permite avaliar o desempenho ambiental de produtos ao longo de todo o seu ciclo de vida. Trata-se de uma metodologia com forte base científica e reconhecida internacionalmente, padronizada pela série de normas ISO 14040.
Em comparação com inventários de ACV de cana-de-açúcar anteriores, os pesquisadores brasileiros observaram menores impactos em categorias como ecotoxicidade terrestre e aquática, formação de oxidantes fotoquímicos (ou “névoa fotoquímica”) e degradação da camada de ozônio. Esses impactos têm efeitos negativos na qualidade dos ecossistemas e na saúde humana.
Os pesquisadores caracterizaram o sistema de produção de cana-de-açúcar de todas as regiões produtoras brasileiras e utilizaram para os cálculos de emissões as metodologias mais recentes com ajustes para a realidade local. O trabalho foi desenvolvido pelo projeto ACV cana, coordenado pela Embrapa, com a participação de vários parceiros, como o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE).
A pesquisadora Marília Ieda da Silveira Folegatti Matsuura, da Embrapa Meio Ambiente (SP), responsável pela pesquisa, salienta que esse foi o primeiro estudo completo e regionalizado de ACV para a cultura. “Existem vários grupos brasileiros que abordam questões como eficiência energética e emissões de gases de efeito estufa, mas não avaliam outras categorias de impacto e nunca se adotou uma abordagem regional”, salienta.
Os inventários de ACV de cana-de-açúcar brasileira existentes até o momento na maior base de dados internacional, a Ecoinvent, foram desenvolvidos no exterior por especialistas que não tiveram contato direto com a agricultura brasileira e utilizaram dados secundários disponíveis na literatura. Por este motivo, segundo a pesquisadora, os estudos não refletiam as especificidades da cultura canavieira brasileira.
O maior desafio dos pesquisadores brasileiros foi elaborar um inventário de ACV observando a atual realidade dos sistemas de produção praticados no País e, mais que isso, adaptar a metodologia à agricultura tropical. “Sempre que se faz um inventário, qualquer emissão para o meio ambiente é calculada por um modelo, mas esses modelos foram todos criados para países de clima temperado com realidade completamente diferente da nossa agricultura tropical”, explica Marília.
Ela lembra que o inventário de cana-de-açúcar existente na Ecoinvent considerava que o Brasil ainda praticava a queima da cana na maior parte da área de produção no País, o que já não ocorre. “Conseguimos, de fato, definir as tecnologias de produção adotadas nas diferentes regiões do País, incluindo as práticas de colheita mecanizada ou manual, precedida por queima”, diz. Esse aspecto apresenta repercussões em categorias de impactos que afetam a saúde humana, como emissão de material particulado, por exemplo.
Outra discrepância entre os estudos que utilizam os inventários da Ecoinvent e o realizado pela Embrapa refere-se à ecotoxicidade. Nos estudos derivados dos inventários já presentes na base consideravam o uso de pesticidas altamente tóxicos que já não são utilizados no Brasil.
Para realizar o projeto, os pesquisadores dividiram os estados produtores em nove regiões homogêneas, em função das condições de clima e solo. O Estado de São Paulo, que responde por metade da produção nacional, também foi subdividido em cinco regiões.
O projeto envolveu experimentação a campo e medição da emissão de gases de efeito estufa em condição experimental. Assim, os pesquisadores chegaram a fatores de emissão mais adequados que o padrão recomendado pelo Painel Intergovernamental para Mudança do Clima (IPCC), a referência mundial para estudos de mudanças climáticas. “A própria documentação do IPCC diz que, caso haja uma metodologia mais específica para o País, desde que consolidada e robusta, pode ser preferida ao padrão do IPCC. O projeto ACV Cana trabalhou exatamente com esta questão”, salienta a pesquisadora.
Impacto dos pesticidas
Outro avanço obtido com o estudo foi a avaliação das emissões de pesticidas. A maioria dos grupos de pesquisa observa questões como desempenho energético e mudanças climáticas, mas ignora um conjunto de categorias de impactos relacionados à toxicidade. “O emprego de pesticidas na cultura de cana era muito pouco estudado, porque os modelos para entender esse comportamento eram bastante complexos”, conta a pesquisadora.
Como solução, a equipe estabeleceu parceria com a Universidade Técnica da Dinamarca (DTU) que desenvolveu um software específico para modelagem de pesticidas, o PestLCI. O pesquisador Robson Rolland Monticelli Barizon, da Embrapa Meio Ambiente, coordenou a pesquisa que resultou na parametrização do software para o Brasil.
Marília Folegatti explica que esse software modela o comportamento de pesticidas no meio ambiente, observando o que ocorre com a substância em diversas condições, pois frações de pesticidas podem alcançar diferentes compartimentos ambientais, como águas superficiais e subterrâneas e o solo. “Como você calcula essas frações? Esse modelo faz esse cálculo, baseado em informações sobre clima, solo, natureza química da molécula, todo um conjunto de informações que se não for adequado para a nossas condições não representará o que de fato acontece”, explica.
Metodologia contribui para agricultura mais limpa
A ACV pode contribuir para a promoção de uma agricultura mais limpa e para a defesa dos produtos agrícolas brasileiros no mercado internacional. A metodologia é empregada em vários países para a formulação de políticas públicas. Também é largamente utilizada pelo setor privado, no desenvolvimento de produtos e processos e de estratégias de negócios, bem como na comunicação sobre aspectos ambientais de produtos.
A intenção dos pesquisadores brasileiros é fornecer os inventários produzidos sobre cana-de-açúcar para o banco nacional de inventários de ciclo de vida (SICV Brasil) e para a Ecoinvent, ambos parceiros da Embrapa. “Se alguém quiser comparar o etanol de cana brasileiro com o etanol de milho americano, por exemplo, vai procurar inventários em bases de dados como essas. Isso é um apoio para a competitividade da nossa produção”, explica Marília Folegatti.
De acordo com a especialista, a avaliação dos impactos da cana-de-açúcar era uma demanda importante e outros países já olhavam para a cana brasileira e estavam gerando pesquisas. “A cana brasileira, assim como a soja, são duas culturas extremamente visadas por conta da suposta competição entre biocombustíveis e alimentos”. Marília esclarece que o estudo possibilita a identificação dos pontos críticos do processo de produção, indicando oportunidades de melhorias no desempenho ambiental.
Embrapa apresentou 20 trabalhos sobre ACV em congresso
O estudo apresentado pela pesquisadora Marília Folegatti Matsuura foi um dos 20 artigos da Embrapa apresentados no V Congresso Brasileiro de Gestão em Ciclo de Vida. O evento foi promovido pela Associação Brasileira de Ciclo de Vida e organizado pela Embrapa, pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Um público de 150 pesquisadores, representantes de órgãos públicos e empresas participaram desta edição, com 120 trabalhos apresentados.
Marília lidera uma rede de pesquisa em ACV na Embrapa. Além de cerca de 20 projetos na área de ACV na Empresa, existem muitos outros com temas correlatos, como emissão de gases do efeito estufa e balanço de carbono. Conforme a pesquisadora, há um conjunto de projetos aplicando a ACV tanto no desenvolvimento tecnológico quanto na avaliação de commodities e produtos de exportação. Uma cadeia trabalhada pela AVC na região Nordeste é a fruticultura voltada para exportação, haja vista que os principais mercados consumidores desses produtos já exigem a avaliação do ciclo de vida.
O diretor-executivo de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, Ladislau Martin Neto, que participou da abertura do Congresso, considera o tema fundamental e elogiou o fato de o evento ocorrer fora do eixo Sul-Sudeste e frisou a importância de considerar as características regionais na pesquisa. “A agropecuária é uma indústria com especificidades que demandam estudos, pesquisas e referenciais com métricas próprias para a nossa região”, declarou.
De acordo com Maria Cléa Figueiredo, coordenadora geral do Congresso e pesquisadora da Embrapa Agroindústria Tropical (CE), o evento buscou trazer um olhar para o Brasil. “A ACV precisa receber uma injeção de energia mais tropical. Muitas adaptações precisam ser feitas em métodos, e as políticas de incentivo precisam ser diferenciadas. Tudo isso precisa ser pensado para o Brasil, e um grande passo nesse sentido foi dado pelo Programa Brasileiro de ACV”, argumenta.